AS VITÓRIAS NA COVA DA PIEDADE
«As eleições durante os 48 anos de ditadura ficaram marcadas no concelho de Almada por duas vitórias importantes da oposição sobre os candidatos da «nação». Ocorreram ambas na Cova da Piedade, terra de grandes tradições antifascistas devido ao elevado fluxo de operários a residir na freguesia.
Estamos a reportar-nos às eleições presidenciais de 1958, com a vitória do general Humberto Delgado, e às eleições de deputados para a Assembleia Nacional em 1969, com a vitória da Comissão Democrática Eleitoral.
Essas vitórias só foram possíveis porque a Cova da Piedade sempre foi o principal bastião da luta antifascista no concelho, devido à implantação da indústria corticeira na freguesia, junto às margens do Tejo.
A acção política dos corticeiros iniciou-se no final dos anos vinte, com várias manifestações de protesto contra o agravamento da sua situação profissional, cada vez mais difícil. Nessa época a corrente ideológica mais forte junto dos operários era o Anarco-Sindicalismo, o grande percursor dos movimentos de oposição em Almada.
Essas manifestações culminaram com o movimento de 18 de Janeiro de 1934, que tornou a vida dos trabalhadores ainda mais dura e difícil, com o aumento da repressão e da exploração no seio das fábricas mais activas na defesa dos interesses laborais.
A partir dessa época o Anarco-Sindicalismo começou a perder a força e influência junto da classe operária devido à prisão dos seus principais elementos. O Partido Comunista Português aproveitou esse vazio que se estava a espalhar junto dos trabalhadores para conquistar apoios na Margem Sul. Foi de tal forma bem sucedido que no início dos anos quarenta era praticamente a única estrutura política antifascista, devidamente organizada no país.
A Cova da Piedade acabou por se tornar um centro privilegiado na luta antifascista, devido ao forte enraizamento político dos seus habitantes, preparados para o que fosse necessário em prole da democracia.
Só com esse espírito é que foi possível garantir a vitória de Humberto Delgado, nas Eleições Presidenciais de 8 de Junho de 1958, nas mesas de voto da Freguesia.
Apesar das fraudes[1] que assolaram quase todas as mesas de voto do país, Humberto Delgado ainda venceu em cinquenta freguesias, uma das quais, a Cova da Piedade. Os elementos da oposição que fiscalizavam o acto eleitoral resistiram estoicamente às muitas manobras realizadas para os colocarem fora da sala onde se encontravam as urnas. Não seriam bem sucedidos e tiveram de ficar com os maços de votos de Américo Tomás guardados nos bolsos.
Quando foi anunciado o resultado a multidão que circundava o parque da Cova da Piedade rejubilou de alegria, ovacionando João Raimundo e outros camaradas, que nunca perderam de vista os «farsantes» do regime.
Algumas pessoas que assistiram a tudo o que se passou, ainda hoje se sentem indignadas pelo decoro e falta de vergonha de meia-dúzia de indivíduos que se tinham vendido ao salazarismo.
Houve vários tipos de fraudes, desde pessoas inscritas em várias freguesias que votaram duas e três vezes, até gente que teve o desaforo de votar por cidadãos já falecidos. Além disso, os elementos das mesas estavam quase todos precavidos com maços de votos, saídos das tipografias, que foram enfiados nas urnas quando não se encontrava ninguém da oposição por perto.
Almada ficou em polvorosa com os resultados eleitorais e o povo saiu para a rua, manifestando-se durante vários dias contra o fascismo e a mentira salazarista.
Em 26 de Outubro de 1969, Cova da Piedade voltou a constar nos ficheiros da democracia, com a vitória da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) na Freguesia.
As eleições para a Assembleia Nacional, as primeiras da era marcelista, decorreram em condições de razoável autenticidade, embora o recenseamento continuasse a ser vedado a uma grande parte da população portuguesa.
Após os resultados eleitorais, Cova da Piedade voltou a sair para a rua, festejando com a alegria possível a vitória da lista da CDE, composta por elementos da esquerda democrática do distrito, perante o olhar atento das forças da ordem.
(Texto extraído de um dos capítulos do livro: Almada e a Resistência Antifacista, de Luís Alves Milheiro)
[1] Pessoas afectas ao regime que votaram em mais que uma freguesia; boletins de voto a favor de Américo Tomás colocados aos maços nas urnas; mortos que «ressuscitaram» para puder votar, etc.
1 comentário:
Muito bem.
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